Recebi de uma colega, no dia 25 de agosto, a mensagem abaixo:
“Antônio, estou acompanhando de perto essas demolições pq minha faxineira mora no Parque União e tinha comprado uma laje nesse condomínio por 30 mil, pagando com muito sacrifício 1500 reais por mês, trabalhando de domingo a domingo, sem descanso para conseguir pagar. A (…) também tinha comprado um apto que já estava pronto e estão revoltadas pq não foi construído com dinheiro dos traficantes, e sim das pessoas que compraram pela Associação de Moradores, pagaram toda a construção e materiais. Ela também me mostrou uma filmagem que fez com celular dos funcionários levando ar-condicionado e outros eletrodomésticos, mas tem medo de denunciar. Elas pediram inclusive para tirar as janelas, portas e louça sanitária que pagaram, para tentar vender ou reaproveitar, e não deixaram. Será que não tem um jeito de o Ministério Público ou a Defensoria fazer alguma coisa por essas pessoas? Não estão atacando financeiramente o tráfico, e sim o pobre do povo (…).
Uma tristeza, minha faxineira pagou durante 20 meses e acabou de pagar há 2 meses.
Tudo muito mal resolvido pelas autoridades, pra variar, penalizando como sempre o sofrido povo. Abraços, (…)”
Tenho recebido relatos semelhantes ao acima de moradores de favela e de assessores de vereadores.
Inclusive, ouvi, no dia 23 de agosto, o mesmo relato acima, no “VI SEMINÁRIO ARTE, CULTURA E PODER – Lugares de Memórias Difíceis no Rio de Janeiro”, durante a palestra “LUTA, RESISTÊNCIA E AUTO-ORGANIZAÇÃO COLETIVA DE MULHERES FAVELADAS E MAREENSES NO RIO DE JANEIRO”, proferida por Gizele Martins, moradora da Maré, jornalista, comunicadora comunitária, mestre em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e doutoranda em Comunicação na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Como estamos em um ano eleitoral, essas ações de demolição geram muitos “likes” para políticos TikTokers.
O senhor Prefeito fica dizendo de boca escancarada que, com essas ações, está ocasionando um prejuízo milionário ao tráfico e às milícias, mas omite, nesse discurso eleitoreiro, que quem realmente está tendo prejuízo são os moradores, pois são eles que pagam e pagaram, com seu trabalho, suor, sangue e lágrimas, essas obras. Senhor Prefeito, não nos engane que não gostamos.
Ora, se as obras são ilegais, o senhor Prefeito deveria ter impedido que elas fossem realizadas desde seu início; afinal, pagamos os impostos para a Prefeitura TRABALHAR E FISCALIZAR. E não para ela se omitir no seu papel de fiscalização e, depois que as obras estão acabadas, as demolir de forma midiática, fazendo com que os moradores pobres das favelas tenham prejuízos consideráveis, tendo em vista que não conseguirão receber de volta o dinheiro suado com que pagaram pelas obras.
A informação sobre o prejuízo que os moradores pobres e favelados tiveram por causa da omissão na fiscalização por parte do senhor Prefeito é omitida por este em seus discursos eleitoreiros.
Quem não vive em favelas ou não conhece quem nelas mora, não percebe o prejuízo, a tristeza e a dor que os moradores estão sofrendo com essas ações da Prefeitura.
Esperamos que o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro intervenham nessas ações citadas em defesa dos moradores.
Enquanto isso, nas zonas nobres da cidade, o senhor Prefeito, com o apoio da Câmara Municipal, libera obras ilegais, mediante:
- Leis, PERIÓDICAS e sempre esperadas, de “mais-valia”, que regularizam acréscimos feitos em edificações em desacordo com a legislação, mediante o pagamento de uma taxa. Os empreiteiros já alertam os proprietários que podem construir ilegalmente, pois logo, logo virá uma nova lei de “mais-valia”.
- Leis de “mais-valerá”, mecanismo que permite licenciar um andar acima do gabarito em futuras construções, mediante contrapartida.
- Leis de Operações Urbanas Consorciadas (OUCs), que, na realidade, segundo a competente jurista Sônia Rabello, são pseudas OUCs, pois, no exame factual e descritivo dessas operações criadas pelo Prefeito, o que se prevê são apenas transferências de direitos de construir dos lotes que servem de desculpa esfarrapada para outras áreas nobres da Cidade, com aumento indiscriminado, nestas áreas receptoras, de seus coeficientes máximos de edificabilidade.
- Licenciamentos questionáveis como os que vemos ser denunciados amiúde na mídia.
Infelizmente, a Prefeitura ficou viciada nessas receitas que têm produzido uma bagunça urbanística na cidade. Isso faz com que o governo se converta em sócio da bagunça e aliado importante da especulação imobiliária.
Ou seja, a Prefeitura é totalmente pró-mercado e não se preocupa com a correta urbanização da cidade. Não há mais uma preocupação com o planejamento da ocupação do solo baseado na capacidade de suporte e na disponibilidade de infraestrutura urbana. O único interesse é arrumar novas formas de arrecadar e de incentivar a especulação imobiliária.
Pena que, nessa discussão toda, se esquece de fazer esta importante pergunta:
“Quantos projetos de habitação social a Prefeitura fez nos últimos anos? Nenhum?”
Esses projetos de habitação social, é óbvio, atenderiam à população favelada que está vendo irem pelo ralo suas poupanças de anos aplicadas nos imóveis que o senhor Prefeito está derrubando.
Em março de 2021, o sítio Urbe Carioca já nos alertava que “Enquanto uma Secretaria brinca de planejar, a outra licencia obras com base em leis casuísticas e questionáveis que visam apenas à arrecadação, sem considerar as normas gerais vigentes, que são sobrepostas pelas primeiras. De fato, lamentável.”
Através do Decreto Rio nº 53.302, de 6 de outubro de 2023, o senhor Prefeito, inconstitucionalmente, reorganizou por completo a estrutura das duas Secretarias preexistentes, citadas pelo Urbe Carioca.
A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Inovação e Simplificação (SMDEIS), responsável pelo licenciamento urbanístico, foi extinta (art. 2° do Decreto citado), e a Secretaria Municipal de Planejamento Urbano (SMPU), responsável pela urbanização da cidade, teve sua denominação e competências modificadas (art. 1° do Decreto citado). Ambas foram fundidas e passaram a compor um novo órgão: a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Econômico (SMDUE).
Apesar dessa mudança de estrutura, aquela dicotomia perversa apontada antes pelo Urbe Carioca continuou existindo, agora em duas subsecretarias, e não mais em duas secretarias: a Subsecretaria de Planejamento Urbano e a Subsecretaria de Controle e Licenciamento Urbanístico, ambas da SMDUE.
Vale ressaltar que o afã arrecadatório do senhor Prefeito na área urbanística continuou, pois temos, na segunda subsecretaria acima, uma Coordenadoria de Arrecadação Urbanística (matéria fazendária), que está no mesmo nível hierárquico que a Coordenadoria Geral de Licenciamento e Fiscalização.
Mencionei que aquele Decreto é inconstitucional porque esse tipo de criação/extinção/transformação de secretarias, segundo interesses políticos/eleitorais ou não, que ocorre normalmente há anos no município do Rio de Janeiro, fere o dispositivo constitucional abaixo:
“CONSTITUIÇÃO FEDERAL
(…)
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(…)
VI – Dispor, mediante decreto, sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)”
A Prefeitura do Rio de Janeiro é useira e vezeira em, sob o argumento de que não há aumento de despesas, extinguir e criar cargos e órgãos municipais, inclusive secretarias, por decreto, como foi no caso do decreto mais acima citado.
Ela alega que está dispondo, mediante decreto, sobre a organização e o funcionamento da administração sem aumento de despesa, pois realiza as devidas mudanças de nomenclatura de cargos, de órgãos e de secretarias, efetuando as devidas compensações financeiras, não provocando aumento de despesas.
No entanto, a Prefeitura esquece do seguinte trecho do dispositivo constitucional sob análise: “quando não implicar (…) criação ou extinção de órgãos públicos”. Logo, salvo melhor juízo, seria inconstitucional a Prefeitura criar e extinguir secretarias, mesmo sem aumento de despesas, via decretos como acontece há anos.
Já comentei sobre essa inconstitucionalidade nos quatro artigos abaixo, publicados neste Diário do Rio:
“Ué, na Prefeitura do Rio de Janeiro, pode?”
“Resposta do TJRJ ao questionamento ‘Ué, na Prefeitura do Rio de Janeiro, pode?’”
“Cadê o MPRJ? Prefeito do Rio tem mais poder do que o Presidente da República?”
“Ministério Público: Dois pesos e duas medidas?”
Informo que o governo estadual também tinha essa prática inconstitucional, mas, como a Assembleia Legislativa não é subserviente ao senhor governador, como nossa Câmara é subserviente ao senhor Prefeito, alguns Deputados Estaduais questionaram essa inconstitucionalidade, e o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro determinou que o governo estadual acabasse com a prática de criar e extinguir secretarias por decreto, e o governador teve que aprovar uma lei recriando as secretarias criadas por decreto. Veja abaixo a ementa do acórdão em apreço:
“TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
ÓRGÃO ESPECIAL
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 0082131-95.2022.8.19.0000
REPRESENTANTES: LUIZ PAULO CORREA DA ROCHA
RUBENS JOSE FRANÇA BONTEMPO
REPRESENTADO: EXMO. SR. GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
RELATORA: DESA. GIZELDA LEITÃO TEIXEIRA
Representação por Inconstitucionalidade. Secretarias de Estado criadas por decretos estaduais que, ainda, operaram transformação de cargos públicos. Secretarias de Estado são órgãos autônomos integrantes da cúpula da administração e a ela subordinados, tendo autonomias administrativa, financeira e técnica.
Criação de entes obrigatoriamente por lei formal, conforme exigência da Lei de Responsabilidade Fiscal. Violação aos artigos 77, incisos II e VIII; 112 §1º, inciso II, “d” c/c art. 145, VI “a” e 149, todos da Constituição Estadual.
Cargo público cuja transformação acarreta alteração das atribuições, e a compatibilização dá-se através de lei formal, dada a natureza da nova função a ser exercida. Flagrante descumprimento do disposto no artigo 98, inciso V da vigente Constituição Estadual do Rio de Janeiro.
Procedência parcial da representação, julgando-se extinto o feito em relação ao Decreto nº 47.523 de 12 de março de 2021 (que criara a Secretaria de Estado de Justiça), por perda de objeto, a teor t 485, inciso VI do Código de Processo Civil, declarando a inconstitucionalidade dos decretos estaduais nº 47.349/2020; 47.626/2021; 47.627/2021; 47.741/2021 e 47.748/2021, que criaram cinco secretarias de Estado. Visando resguardar-se a prestação dos serviços públicos no interesse dos cidadãos, atribui-se à presente decisão efeitos ex nunc, buscando resguardar acontecimentos anteriores, concedendo-se o prazo de 06 (seis) meses para desarticulação das secretarias criadas pelos decretos antes mencionados.”
Infelizmente, o Ministério Público Estadual, o Tribunal de Contas do Município e nossa Câmara Municipal se omitem nessa questão, permitindo, assim, que o senhor Prefeito, sozinho, como um pequeno ditador, “brinque” com a estrutura administrativa da Prefeitura a seu bel-prazer e interesse político.
Voltando ao tema da visão arrecadatória e não urbanística em nossa cidade, considerando tudo o mais acima relatado, dizem até que vivemos numa cidade conhecida como a do PL – “Pagou Legalizou” – e numa cidade da prefeitura dos gabaritos altos e não de alto gabarito.
Senhor Prefeito, saiba que, em defesa de nosso futuro, a urbanização do Rio não deveria estar à venda.